quarta-feira, 16 de julho de 2008

Detetive Amoroso

O ventilador rangia em seus movimentos de bailarina sem sair do lugar, os móveis se revezam soltando estalos aqui e ali, os últimos raios de sol se apertavam para passar nas estreitas aberturas da persiana gasta do tempo. Sobre toda superfície do lugar, reinava uma fina camada de poeira que já quase faz parte da decoração do lugar. Na cadeira ao centro, quase tão inerte como os móveis que lhe faziam companhia, um detetive aguardava. Aguardava pelo quê?
Talvez por três batidas na porta seguidas pela entrada de uma fêmea fatal. Vestida em vermelho com seu lenço ora apertado entre os dedos, ora a secar-lhes as lágrimas dos olhos. Ela contaria seu caso, ele se prontificaria a ajudá-la, ela cairia em seus braços e ele a seguraria como se fosse a única.
Ou então esperava por uma sinfonia dissoante de cantadas de pneus, gritos na rua, rajadas de metralhadora e as sirenes da polícia. Olharia pela fresta já alargada na persiana de tanto ser aberta, iria até seu casaco no mancebo e dali até a delegacia. Onde seus velhos companheiros e hoje informantes dariam a ele uma história que renderia muitos drinks, um soco na cara e longas noites sem dormir.
Na verdade, esperava apenas que algo acontecesse. Sabia que era muito mais provável que ali entrasse mais um marido munido de sua desconfiança conjugal e ele, ele viveria mais alguns dias atrás de uma mulher e seu amante. Tirando fotos, gravando conversas e ouvindo atrocidades do marido, como se fosse ele o homem com que sua mulher saía.
Perdido em seus pensamentos, nem notou o envelope que silenciosamente entrou por baixo da porta. Como se não tivessem sido feitos para isso, abriu os olhos com dificuldade. Viu o envelope, em seguida se virou para Doce de Leite, Tudo bem, é uma aposta. Se este for mais um marido desconfiado esse será meu ultimo caso. Se não for, você ganha e eu continuo a trabalhar. Fechado, a gata apenas voltou a deitar sua cabeça nas patas, como se dissesse que nem se preocuparia com as chances de perder.
A aposta pesava em seus ombros, não outro motivo havia para tanto tempo se demorar sentado na mesa com o rosto nas mãos e o olhar no envelope. Levantou-se, ao seu peso e ao extra que carregava. Andou pesado até a porta e enquanto o ultimo raio de sol deixava de iluminar o branco do envelope, pegou-o nas mãos.
Enquanto caminhava de volta, agora mais leve, lia a mensagem escrita a ele. ‘Doca 23, Armazém 7’, Será que você foi um coelho em outra vida, foi sua despedida à sua amiga felina. Com toda a curiosidade e ansiedade que lhe foram ausentes nos últimos anos ele deixou o escritório e descia as escadas enquanto vestia o casaco.
De súbito, parou na porta que dava à rua. Na rua, agora um bloco de água se impunha a sua passagem. Chovia como há muito tempo não acontecia, chovia como se todas as nuvens da cidade estivessem disputando um espaço mínimo e enquanto se empurravam umas às outras derramavam toda a água que guardavam dentro de si sem critério algum. Levantou sua gola, afundou o chapéu na cabeça, respirou uma ultima vez a seco e ainda segurando as golas adentrou o ringue molhado.
Atingido por todos os golpes das nuvens, entrou no que parecia ser um bar. O Rajada de Bala. O dono, o velho barman era seu amigo de infância. Todo mundo tem um amigo que nasceu disposto a tomar um tiro por uma amizade, é algo conhecido a todos nós. Desnecessário dizer isso, o barman não morreria nem pela Mãe. Mas quando se tratava de informações, era a pessoa a se recorrer. Todos também temos um amigo que conhece todo tipo de gente e não importa o lugar, sempre tem alguém conhecido por perto. ESSE era o tipo do barman.
Na verdade o Rajada de Bala era uma grande coleção de amizades do dono. Pena que ele tinha muitas figuras repetidas: matadores de aluguel, capangas, guarda-costas, informantes, policiais corruptos e marginais recém-iniciados existiam aos montes. Ele tinha um grande chefão da máfia, um capitão da polícia e a sua figura mais rara: um político corrupto. Pena o barman não ter com quem trocar para completar sua coleção. Mas ele com certeza ganhava dos outros em quantidade, Ei, meu velho, Ei meu chapa, O de sempre, Não, estou aqui a trabalho hoje, Ah, quem foi dessa vez, aposto num marido, Não, dessa vez quero acreditar que a coisa é grande, eu tenho um endereço, você tem um nome, Coisa grande, gente famosa envolvida, Não, ainda não sei bem com o que estou lidando, eu te mostro o endereço que tenho, você me dá um nome?
O detetive encharcado tirou um pedaço de papel que bravamente lutou contra a umidade do casaco, perdeu, mas lutou bravamente. Agora estava ali repousando para sempre na mão gelada e enrugada do homem que o afogou, Meu chapa, eu não sei com o que você se envolveu, mas eu não vou te dar um nome, Meu velho, o que está acontecendo nessa cidade, Você não vai querer saber, aliás, nem deve saber, melhor voltar para seus casos de adultério, Obrigado, já ajudou muito.
Como se respeitasse a vontade do detetive a chuva agora havia passado. Restava agora apenas as nuvens negras passando em frente à Lua cheia apenas para deixá-la mais aterrorizante. Fumaça saía dos bueiros como se fosse coisa normal. Alguns gatos passeavam pelas beiradas dos prédios desafiando a gravidade e o acaso a acertarem-lhe as costas ao chão. Pela ultima vez naquele dia, o detetive levantou a gola e saiu andando.
Conferiu uma ultima vez o endereço, parecia que toda vez que tentava memorizar os números, eles batiam em sua testa e voltavam ao papel. Mas já não era mais preciso enjaulá-los em sua mente, o lugar era esse. A doca de número 23, no porto da cidade. Subiu lentamente cada degrau da escada ao lado de fora, escada essa que parecia ser infinita. Se a contagem de degraus do detetive estivesse correta, agora deveriam faltar só mais três degraus para chegar às nuvens. Felizmente para ele, antes de sua visão ser atrapalhada pelo negrume do céu, chegou até a janela que dava visão para dentro do galpão.
Dizer que o detetive não acreditava no que via seria uma inverdade, mais acertado seria dizer que ele queria não acreditar. De fato, se aquilo que viu não fosse realidade seria muito mais confortável para o bem estar dos seus nervos. Lá estava numa grande mesa o prefeito, alguns secretários, uns tantos empresários, grandes organizadores do crime e dúzias de assistentes respectivos. E ali do lado de fora, suando como nunca, um detetive.
Por alguns minutos, talvez não por opção, mas sim por não conseguir se mexer e correr dali, o detetive ouviu a conversa que se desenvolvia. Ouviu nomes, propostas, ameaças, acordos. Viu apertos de mão, saudações, dedos em riste, mãos ao alto, dedos acusadores. Queria ser surdo a continuar a ouvir tudo aquilo. Foi quando juntou todas as forças que encontrou no seu corpo, na sua força de vontade, na sua mente, nas suas lembranças e qualquer outro lugar do qual fosse dono, que o detetive esboçou um movimento de fugir dali. E eis que um rosto se virou para ele.
Era o secretário da segurança pública, o rosto era conhecido seu, afinal era o cargo maior da força da qual um dia ele já fez parte. Sorte a dele era de que o secretário não conhecia o seu, e mesmo que conhecesse o instinto da auto-preservação dos seres humanos pode nos assustar às vezes, o deste detetive o fez ser mais rápido do que um olhar e o tirou da vista de qualquer um dentro do armazém.
A passos largos desceu das alturas onde se encontrava até o chão, e desceria mais se o solo que toca seus pés lhe permitisse. Andou apressadamente sem olhar para trás em direção ao armazém. Nunca na vida tinha sentido tanto medo, tão ameaçado. Nenhuma visão de uma mulher e seu amante era tão opressora como a cena que tinha presenciado agora.
Só queria voltar para seu escritório e ficar a espera de mais um cônjuge desconfiado, afinal de contas ele era só um Detetive Amoroso.

Sem comentários: