domingo, 10 de agosto de 2008

o coveiro demente está à solta nas salas escuras


Brasileiro é não apenas aquele vendido ou dado nas propagandas na qual "não desiste nunca". É também a cria, ou a permanência da letargia e a resistência ao novo.
Quando se fala isso, nos remete imediatamente ao analfabetismo político da população que por tanto tempo temeu experimentar tendencias novas na hora do voto. Mas o foco deste "medo do novo" reflete-se na vida cultural, ou melhor, se a escola de Frankfurt adorava criticar a indústria cultural através de comentários xiitas de Adorno (minha humilde opinião), tenho de dar o braço a torcer que se condicionou um olhar, mais precisamente, nos permitimos a ter "olhar viciado" a ponto de esperarmos sempre o quadro repetitivo.
Meu amigo chega a mim com cara de emputecido.

Amigo
- Tô puto...o tempo que fiquei na bilheteria no cinema me irritou profundamente, cara!

Eu
- Ficou muito tempo esperando?

Amigo
- Nem é isso! enquanto esperava no guichê a mulher se acertar com os cartões ouvi na bilheteria ao lado um homem dizer pra mulher - Quero ver o filme do Zé! - e a mulher dele falou imediatamente - Aaaaah não, é muito tosco, não vamos ver não....vamos ver múmia 3 (ne: na boa? se fuderam....é simplesmente o pior filme que vi este ano)

Eu
- Poxa....que tolice!

Amigo
- Não pára aí...do outro lado mesma coisa: um homem queria ver o filme e a mulher falou na hora: Creeeeeedo, Deus me livre! Zé do Caixão ninguém merece!

Vejo aqui uma espécie de assassinato de vários suspeitos. Se o uso de armas estivesse aprovado, pessoas como estas exterminariam todas pessoas mal-encaradas por se parecerem com assassinos, ladrões ou tarados.
Vi o filme do Sr. Mojica Marins em sua presença, na do roteirista Dennison Ramalho e do escritor Murtarelli. Foi uma experiência fenomenal poder ter participado duma projeção destas. A sala nem estava tão cheia. Mas sabia que naquela sala estava o último dos remanescentes do cinema inventivo e genial do Brasil. Foi uma data memorável. Para minha alegria plena, Ramalhão, o roteirista e assistente de diretor me contava todos segredos que poderia perder.

Sai do filme justificado e feliz porque vi na tela um dos melhores filmes nacionais que o cinema brasileiro pode oferecer. Lembro-me quando saiu "O cheiro do Ralo" do Heitor Dhalia, eu o vi e preferi ficar quieto apesar de não curtir muito o filme. Sabia que nas veias deste filme, pulsava uma estética própria e uma honestidade do diretor no que produziu. Isso, se não agrada, no mínimo impõe respeito.

No caso deste do Mojica, o filme se torna tão inventivo, que até os patrocinadores que aparecem de praxe nos créditos iniciais de filme brasileiro, estão inseruidos no discurso inicial. A introdução do filme, é a melhor introdução do cinema nacional de todos os tempos, mas que, só funciona porque a figura do coveiro, tem uma potencia visual incomparável!

E se o que eu achava que seria um filme abjeto, do horror, foi na verdade um delírio com mãos de ferro na direção, trazia em cada fotograma a competência do retorno do mau e velho personagem brasileiro "Zé do caixão", dono de uma estética de cinema totalmente imersa nas culturas e medos mais brasileiros: o medo da macumba, do que não se conhece, do que é feio, do que se despreza, da pobreza e onde a fé sincretista não alcança.
O cinema de repertório popular é com certeza a maior pulsão que a população brasileira esqueceu porque se permitiram adestrar nos gostos a partir do olhar. Na época que o brasileiro se identificava com o repertório popular, se pagava na entrada de cinema o valor relativo a uma passagem de ônibus. Hoje, tiraram esta identificação desde antes da retina, distanciaram o cinema do público comum e castigaram o bolso. "Combati o o bom combate e perdi a guerra" é um trecho bíblico.

Uma pena, pois é disso que precisamos: do imaginário que brinca com o que está perto e amedronta, não com a realidade imposta e construída por outrém. Uma realidade que vem do mercado de outro país. A nossa realidade é completamente imersa no popular, na rua, na pinga, no dominó. Foi nessa realidade que um simples coveiro surgiu para amedrontar nossos avós e pais e até hoje faz efeito, mas que infelismente, perde não para o medo construído de uma realidade passada, mas pelo controle de mercado de olhares que erra o caminho certo: o do investimento, manutenção e permanência da nossa cultura.

Salve o mestre Mojica, o nosso mestre que pariu um "cinema de autor" sem qualquer tipo de referência e que quando questionado o porque de seu misticismo fazer tanto efeito, responde sempre:

- minha religião é o cinema!!!

1 comentário:

Anónimo disse...

Caramba cara!
Quase chorei de raiva lendo seu texto! Não é possível um filme desses amargar no máximo 10 pessoas por sala! Como pode???

É emocionante ver o retorno de alguém que dedicou uma vida ao cinema mesmo sendo alvo de tanta descrença e preconceitos! Queria ter a metade da dedicação e perseverança que ele teve a sua vida toda!

E ainda não acredito que perdi essa sessão com o próprio Mojica! :(